29.4.14

Meli


É claro que eu gostava de te ver chegar
com uma blusa de alças frouxas, uns tamancos inverossímeis
e as mãos cheias de calos, desatando o seu dia no estúdio
a gravação do disco com o seu namorado sempre tão exigente
que te faz se sentir um lixo ali sentada na bateria

ato seguido se punha a me mostrar músicas próprias
e a sonhar sobre outra banda, em que você poderia cantar
eu ia abrindo um sorriso que era também uma espera
aos poucos seu ritmo diminuía e ainda de pé
eu te beijava a boca, aquela boca mole se ajustando ao silêncio

não sei como a gente ia parar na cama e transava quatro ou cinco vezes
você terminava com as bochechas rosadas, e ria
esperando que eu soprasse sua nuca e a linha que vai do seio ao clitóris
voltava a falar de como ele recrimina o seu tesão e que um dia ainda vai se separar
e eu te escutava desgostosa, impotente, buscando com meu corpo a parede fria
(não desejava que você largasse ele por mim, só desejava que você largasse ele)

eu gostava das caminhadas por San Telmo, bairro que você mal conhecia
e se deslumbrava, como um turista em sua própria casa,
da sua falta de fome que de uma hora a outra se transformava em muita fome,
como se estar viva fosse uma novidade sempre
eu comprava umas cervejas na volta, só pra te ouvir cantar

mas houve aquele domingo em que você quis ir embora cedo e eu soube
lembro que caminhar até o elevador me custou cada movimento
abrir o trinco, penetrar o corredor quente e escuro, apertar o botão
nesse último gesto meu corpo inteiro se deteve num arrepio –
espero que você entenda por que deixei de atender suas ligações

6.7.13

-

para Tomás

todo mundo morre, e eu vendo a tarde alaranjar-se atrás da igreja
dizer que o dia é longo, eu não digo
dizer que passa rápido, que quando fui ver já tinha sido...
meus males não vêm dos passos do tempo
tanto faz se aquela amiga chega ou se eu enrolo outro cigarro
tanto faz que eu escreva ou durma
até porque dormir e escrever são o mesmo,
se considero os sonhos e os sonhos
não sei se me explico quando desapareço ou me encerro
eu sozinha sou igual a você
esse sentar-se na beirada da cama e olhar pela janela sem nunca morrer
depois cigarro e fingir que espero a minha amiga
aquele que espera não tem de fazer mais nada

21.3.13

não comece ainda o enterro
velemos mais uma noite o nosso morto
deitemo-nos ao lado dele
na cama compartilhada
e durmamos tão incômodas e tristes
que nossa imagem compadeça um fotógrafo
faça-o porque sou eu quem seguirá chorando
longamente a sua morte
quem despertará no meio da noite
quando os sonhos mesmos
compreenderem que ele se foi
e em outras noites
é a mim que ele assombrará
eu, a intranquila
que o verei em todas as coisas
que esperarei o milagre
você é minha cúmplice neste crime,
fique só mais uma noite

(20/09/12)

18.12.12

as coisas de amor nunca tiveram forma justa
o que sim se sabe é que são doze
fervem a 36ºC e são solúveis em sangue
algumas nunca deixam a casca
a calcária casca de nácar, que é
o mesmo que medo
o nácar é a saliva ansiosa da ostra
- não, nunca foi confortável
abrigar um corpo estranho

as coisas de amor querem ser
mas você sentiu um instante de vergonha,
como por vezes te causa vergonha
algo que você produz,
você se encerrou
o amor pereceu na língua
você se convenceu
(você foi assustadoramente convincente)
de que se tratava
de outra classe de coisa

14.7.12

2012

lugares tão bonitos quanto este
inundarão rapidamente
e os ventos desviarão outra vez
a foz do rio Cambury
o mar se encherá de rio
as ondas
que chegarem à costa
(lá está você)
serão ouvidas
do quarto onde dorme
você despertará
já imersos os pés da cama
e logo toda a cama
flutuará pela escuridão
trombando criados-mudos
atravessará delicadamente a porta
ganhará a tempestade,
a maré violenta que sossega
pra lá da rebentação
da minha cama eu te verei no alto-mar
uma vez amanhecido o dia
e um grande livro de cabeceira,
remo de capa dura,
me levará até você

(29/11/11)