13.7.09

oroboro

Assim, como me sinto enquanto lavo o rosto debaixo do chuveiro quente, como uma euforia misturada à placidez de saber que está aí fora no quarto, à minha espera, com seus pensamentos sonolentos sobre o dia e eu; e eu que noutras vezes lavei meu rosto sob a água quente do chuveiro sem conceber que poderia me sentir assim, e mesmo quando saio e a casa já foi refrescada pela manhã, e o ar está suficientemente úmido para poder senti-lo na ponta dos dedos conforme deslizo até o quarto - lá está você - e nunca uma felicidade como esta me percorreu tão insistentemente dias e meses a fio. É tão estrangeiro ver-me ir ao trabalho com os pés arrastados de ontem e mergulhar no vazio das reuniões de decisão alguma, nos escritórios em que nada (nada) germina, mas mesmo assim ansiar por saber da volta, sonâmbulo em meu movimento pendular, sacudido apenas por uma ou outra vontade de não voltar para ti, lembrando subitamente em seguida que acabei trancando a porta ao sair e vendo túrgida a ideia de deixá-la ali presa enquanto sigo outro caminho. Porque é tão aterrador que eu sempre volte e porque sou o teu bicho arredio que acredita que está dando passos para trás quando volta para casa e você no fundo sabe que vou explodir outra vez em qualquer um desses dias, sacudindo-lhe o corpo miúdo para dizer que estamos muito dependentes um do outro, e a verdade é que estamos mesmo dependentes um do outro, mas você não me escuta. Você só age como quer e como quer que eu aja, e eu preciso te lembrar, arrepiado, que corre o risco de me perder para qualquer uma que caminhar pela rua olhando o céu recortado pelos prédios ou sentir particular ternura pelos ipês amarelos, e eu preciso fugir para encontrar estas mulheres ou para nunca encontrá-las e me perder em mim, descobrir de que é que vivo, acabar por escrever um livro salpicado das coisas que você me contou, e você nunca saberá dar o valor justo ao que fiz, e vai me ouvir distraída com a mão enfiada na salada de tomates enquanto eu digo que voltei à cidade para lhe entregar isso e que lhe devo muito do que sou, mas hoje sou maior do que era naqueles nossos tempos, nossas madrugadas em frente à televisão, procurando pornografia de bom gosto, eu me distraía com suas dancinhas malucas e os jogos em que eu sempre perco, porque você me faz rir.