18.3.11

a vez dos outros

Sara recebe em casa
uma carta-documento
mas ela não está em casa
está no trabalho
e tudo vai bem no trabalho
os patrões viajaram
ela está a cargo
ela não entende
por que recebeu uma carta-documento
a empregada dá de ombros
ela não dorme essa noite
seu filho diz não há de ser nada
ainda vamos rir disso
ela escuta, mordiscando um pão
à tarde faz um telefonema
aciona seu advogado
pra que se ponha alerta
passa a semana
ela perdeu peso e pensa
na segunda vou ao correio
pulo o almoço
assim vai ser
chega segunda
ela está no correio
tem uma senha na mão
mas o carteiro pode agora mesmo
estar com o dedo na campainha
e a empregada vai dizer
que Sara não está
são três as tentativas
antes que a carta volte de vez ao correio
e espere por Sara
que espera qualquer coisa
o que é uma carta-documento, eu lhe pergunto
eu, que recebi poucas cartas
jamais uma documento,
é notícia ruim
não importa o que seja
é sempre ruim,
Sara diz e chega sua vez
a senha úmida pousa no balcão
uma moça lhe sorri
só porque está atrás do vidro
agarra um maço de cartas
folheia
a carta poderia não estar ali
mas está
é amarela
Sara a toma nas mãos
passando por mim
diz já vou indo
se a leio aqui, desmaio

19.2.11

se o som de um carro que chega
não te desperta nada
a madrugada avança sem
que você recue
lá de fora uma língua estrangeira
entrecorta a música
sexta-feira, quinto andar
nenhum cheiro é memória
amigos que um dia tiveram rosto
dormem profundamente
não mais:
ânsias com hora marcada
pequenos confortos em um cenário
de calçadas gastas e o cão sobre o muro
quando o almoço saía ao meio-dia
e o jogo era percorrer as duas quadras até ele
com os olhos fechados
eu tenho enfermidades inomináveis
me retorcendo as vísceras
conheci rasamente uma mulher
quando criança pensava que
só os adultos tinham vísceras
é doce e não me importa, o novo
resvala meus sentimentos
mais honrosos
se vai de tédio
até mesmo as mulheres
serão imperceptíveis