13.2.08

o monstro no ninho.

Quando eu era pequena, gostava de brincar uma brincadeira esquisita. A idéia vinha sempre que estávamos chegando em casa, de carro. Eu imaginava que aquelas pessoas tinham me recolhido na rua, que eu não pertencia a nada daquilo, nem os conhecia. Eu entrava na casa olhando ressabiada para tudo, achando as coisas limpas demais, a casa grande demais, fazendo um esforço imenso para não reconhecer os móveis. Eu tocava tudo com receio e encantamento, e caminhava farejando os cômodos, feito bicho. Eu então encontrava meu quarto, e inventava que tinha sido especialmente decorado para mim, naquela tarde. Que o casal gostaria que os chamasse de pai e de mãe, esses eram seus nomes. E o meu ali dentro seria: filha. Por último eu tomava um banho para me sentir limpa como a casa e me alimentava com muito gosto. Eu sempre me fingia esfomeada.

Hoje, quando volto a essa casa, descubro meus pais ainda brincando.

um trecho de qualquer coisa

Tinha a garganta seca e as pernas doloridas, ainda do tombo no morrinho. Mas não podia parar de correr. Os outros meninos iam à frente e, de olhos fechados, ele aguçava os ouvidos para o desespero dos chinelos batendo. Subiu a ladeira meio sem equilíbrio, vacilou por um momento. Vem, vem, vem! Lá em cima, debruçaram-se lado a lado na mureta da ponte. Um trem encardido passava correndo e sumia por debaixo dos pés deles todos. Olha ele ali! Ao lado das paralelas de ferro, sacos plásticos, desses de lixo, cobriam alguma coisa que havia molhado a areia dum jeito esquisito.

Ficou assim, olhando, olhando. E sentiu um calafriozinho sem explicação bem na hora em que o último vagão desapareceu e levou com ele o punhado de vento que arrancou os sacos pretos do chão. Aterrissaram do outro lado da linha, mas ninguém reparou. Os seis pares de olhos estavam estatelados no corpo que o vento revelara. Ficaram calados por alguns minutos e ele nem queria mais olhar, mas era impossível. Estava lá: imóvel, coberto de sangue, e tinha as pernas numa posição que nem ele, que se divertia com a cara de susto da mãe quando lançava os calcanhares para trás do pescoço, poderia repetir. Caco forçou um vômito barulhento que foi cair lá embaixo. Os meninos acharam graça.

Os dois mais velhos, o Júlio e o Caco, falavam em descer e ver se os olhos estavam abertos, enquanto os outros se apoiavam na mureta para cuspir e mostrar a façanha ao precursor da brincadeira. Ele não. Continuava hipnotizado pela cena. Era a coisa mais horrível que já tinha visto, mais do que a pombinha que o cachorro estraçalhou. Passou a mãozinha devagar por toda a mureta – tinha os nós dos dedos esfolados e cheios de areia – e achou que de olhos fechados poderia sentir o homem ainda ali, preparando-se para pular. Mas só o que veio foi o safanão do menino novo, primo do Jorge, que riu dele e o apressou para descer de volta a ladeira.

Ele não queria ver os olhos. Não queria ver se o cérebro escorria pra fora que nem no filme do cinema do postinho. Por isso ficou ali brincando, do outro lado da linha do trem. Mexeu nos parafusos enormes, catou pedrinhas. Até que os meninos se cansaram da brincadeira de empurrar uns aos outros para cada vez mais perto do morto e depois voltar correndo, e resolveram ir embora.

Chegou em casa já de noitinha. Pôs água pro vira-lata e recolheu a mangueira da grama. Pisou em casa com os pés sujos de areia, os chinelos nas mãos. A mãe não estava. Talvez na área. Mãe? Não, não estava. Colocou os chinelos sobre o tanque e voltou à cozinha. Pegou pão, manteiga e leite. Em seguida, prato, faca e o chocolate em pó. Montou o lanche. A mãe o chamava de ratinho, por causa desse jeito de comer as coisas segurando firme com as duas mãos e arrancando naquinhos com mordidas ligeiras.

[...]