23.11.08

teste 1

Pequena história destinada a dar sentido a uma dessas coisas inverossímeis por que passamos por cima usando qualquer desculpa, mas qualquer dia as explicações vão rarear, as incoerências ficarão nuazinhas, encontraremos uma barra de chocolate no lugar do sabonete e aí é que eu quero ver


Melvin é um dos funcionários-invisíveis da livraria. Entra pelos fundos quando anoitece, bate ponto na sala de estoque de auto-ajudas, não conhece as meninas do caixa, tampouco os rapazes que carregam no crachá nome e o sobrenome 'vendedor'. Mas, ao contrário de todos eles, vê sempre o chefe e tem com ele algumas breves conversas acompanhadas de palmadinhas nas costas e sorrisos amarelados. Melvin tem uma sala só sua, com cadeira confortável e mesa grande. Ali, coloca badulaques de todos os tipos e cores para enfeitar a solidão.

A função que exerce, tanto quanto sua confidenciabilidade, é levada muito a sério por Melvin. É afinal ele quem aplica cuidadosamente nas páginas os fiapos e as chamadas remelas de livro. O trabalho é feito com pinça e minúcia. Ele escolhe apenas uma ou duas páginas de cada volume e posiciona o pequeno resíduo. Quando são duas páginas, ele evita que sejam ambas pares ou ambas ímpares, que uma remela esteja no mesmo quadrante que a outra ou que a escolha se torne simétrica uma vez que pensemos o livro aberto exatamente no meio. Mas o mais importante, na verdade, é que a disposição das melecas e dos fiapos pareça randômica, o que inclusive permite que Melvin ignore de vez em quando essas regrinhas.

Mais uma coisa: os minúsculos fiapos e remelas devem ser bem afixados na folha de papel, para que não se soltem antes da hora e acabem estragando a surpresa do leitor. Este deve poder interromper a leitura e cutucá-la com a unha até que saia ou supor a letra que está ali debaixo e seguir em frente. Como preferir.

Melvin tem profundo respeito pelo que faz, embora nem ele nem o Seu Dentes de Nicotina saibam o porquê deste trabalho existir. Seu Dentes disfarça a ignorância com os tapinhas amistosos nos funcionários-invisíveis e com palavras pretensamente engrandecedoras, como: nós dependemos de você para manter a ordem por aqui, meu jovem. E Melvin cuida para que o seu relógio de parede esteja sempre afinado com Brasília.

para Leonardo Cruz Gonzalez, esta paródia e o meu amor.

9.11.08

receita pra amenizar saudade

Você vai precisar do seu travesseiro e do sol.

Pega o travesseiro, põe ele no sol.

Deixa curtir por meia hora.

Pega de volta, deita na cama, abraça ele.

Pensa em mim.

6.11.08

sem título

não precisa ser sempre publicável, precisa ser só
a vontade de mergulhar quando tiro a roupa em frente à janela,
o ar fresco da noite nos peitos
mas meu pai desaprovaria essa exposição, meu tesão pelos estranhos,
essa repulsa pelo verbo administrar
meu pai procura me ensinar a viver,
mas viver é mesmo aprender a viver
não precisa ser sempre publicável, precisa ser só
o cheiro obsceno de um amor antigo
do que é que sou feita depois de experimentada pela vida?
depois de experimentada, a vida precisa ser publicável?
a dignidade das minhas noites mal dormidas,
a cotação de cada crise,
um gráfico bem elaborado do meu crescimento
precisa ser vida ou só
projeto?
(e uma ansiedade triste)
quando eu nascer vigorosamente noutro dia,
preciso ser pública e publicável?
quanto valho sozinha?
se toda madrugada é um fôlego

2.11.08

tinta fresca

Eu te devoro com os olhos úmidos. Eu tento te amolecer. Mas teu bom olho bóia etílico e embaçado – você nunca mais vai me ver. Eu arrasto os pés por esse espaço teu, eu contamino a tua vida? Eu quero amaldiçoar todos os cantos com a minha melancolia, mas tudo virou para o avesso e os cantos convergem em um só ponto, que eu não vejo – aqui eu não caibo, aqui eu não mereço. Eu sou expulsa pela tua indiferença. Eu levo um pedaço de você, de que nem vai se lembrar. E o dia tem seus direitos.

Esse domingo chove descompassado. Eu não quero voltar para a cidade. A fuligem cobriu minha alma quando pisei descalça o asfalto. Eu quero ir lá fora agora, menina, eu quero a chuva, a lama entre os dedos, a grama macia, eu quero meu corpo mais livre, meu corpo de criança reconciliado com o mar. Eu não te queria quando eu comecei, o que eu quero é terminar contigo. Vamos, vamos lá fora. Eu um dia te convidei para dançar. Mas você é a dona da música. A dona da música de costas para mim. Quando você se virar, será para o lado errado, o lado em que você continua sem (me) enxergar. Eu moro do lado de lá do teu rosto. Eu acho que vou sempre morar.

20h30

- Alô

- Oi, filha!

- Oi, mãe

- Tudo bem?

- Tudo bem e você

- Tudo bem... E essa cabecinha como tá?

- Tá bem, mãe

[a pior parte de não enlouquecer é ter que aguentar sua mãe achando o contrário]