22.12.08

pós

Há pouco mais do que o desejo de que venha. Do que a vontade de me deitar ao seu lado e ver que tudo ainda pode ser dito. Mesmo que não daquela maneira, não como nas longas cartas. No fim, ambiciono o fim do silêncio mais do que tudo. Porque a vida se divide em gomos em que o silêncio é necessário e gomos em que se torna absolutamente insuportável. Assim como não supõe os dias sem água, sem sono, sem porto, os dias de boca salgada e bolhas de sol, o náufrago que luta para emergir; assim é a minha ignorância, e digo, repito, caduco, quero pouco mais do que te encontrar na plataforma e transferir tua bagagem para as minhas mãos. Um peso que não me cabe e que vai me desprezar em toda a sua trajetória. Quando é de nossa escolha ficar – fincar –, o tempo articula sagaz a sua vingança. Faz correr o que ignoramos e boiar podre toda a vida entre um copo e o nariz. Mas desejo que venha, pois se um dia ficamos é para no outro encarar o que envelhece, com nossos olhos perturbados infantis. Deite-se ao meu lado por um momento apenas, ouça a rouquidão do meu cansaço, me conte o que havia por lá, onde a saudade que entornei não alcançou.

10.12.08

um poema de meu amigo Daniel Barreto

com gosto de pipoca
tua boca do teu rosto minha oca
minha fuga,
me afoga em teu resto
em teu todo calor refoga
salga
agua na boca, lingua na boca.
com gotas de algodão
tua mão é minha saia de dançar baião
minha gula
me engula doce, me despedace
como um algoz, coma a gosto
a caminho do rosto, carinho no rosto
foi meu colo louco
quem te quis
encima do sonho
vem seu teto torto
sem paredes vis
cimentado meu coração

9.12.08

porque

a voraz autofagia das paixões natimortas. meus anseios e medos. tudo em mim se revolta. todo intenso me cavalga. mas antes de me consumir, antes mesmo que abocanhe o rabo próprio, me reconhecerei em vícios. me livrarei da urgência angustiosa. dos quandos, de mim. aos poucos, eu nasço.

é pois.

Quando estou tão triste. E busco nos emails do yuri qualquer sorriso. E telefono para ela. E penso em todos vocês e na janela. E quero tanto ir embora dos quases. Quando tudo se faz mais grave. Ah, meu amor, e quando você não atende. Mas a vontade se torna cansaço. Você nem se surpreende. Que eu durma, que eu também quase. Te deixo um recado mudo. Você vai dizer ...que ando bebendo demais.

23.11.08

teste 1

Pequena história destinada a dar sentido a uma dessas coisas inverossímeis por que passamos por cima usando qualquer desculpa, mas qualquer dia as explicações vão rarear, as incoerências ficarão nuazinhas, encontraremos uma barra de chocolate no lugar do sabonete e aí é que eu quero ver


Melvin é um dos funcionários-invisíveis da livraria. Entra pelos fundos quando anoitece, bate ponto na sala de estoque de auto-ajudas, não conhece as meninas do caixa, tampouco os rapazes que carregam no crachá nome e o sobrenome 'vendedor'. Mas, ao contrário de todos eles, vê sempre o chefe e tem com ele algumas breves conversas acompanhadas de palmadinhas nas costas e sorrisos amarelados. Melvin tem uma sala só sua, com cadeira confortável e mesa grande. Ali, coloca badulaques de todos os tipos e cores para enfeitar a solidão.

A função que exerce, tanto quanto sua confidenciabilidade, é levada muito a sério por Melvin. É afinal ele quem aplica cuidadosamente nas páginas os fiapos e as chamadas remelas de livro. O trabalho é feito com pinça e minúcia. Ele escolhe apenas uma ou duas páginas de cada volume e posiciona o pequeno resíduo. Quando são duas páginas, ele evita que sejam ambas pares ou ambas ímpares, que uma remela esteja no mesmo quadrante que a outra ou que a escolha se torne simétrica uma vez que pensemos o livro aberto exatamente no meio. Mas o mais importante, na verdade, é que a disposição das melecas e dos fiapos pareça randômica, o que inclusive permite que Melvin ignore de vez em quando essas regrinhas.

Mais uma coisa: os minúsculos fiapos e remelas devem ser bem afixados na folha de papel, para que não se soltem antes da hora e acabem estragando a surpresa do leitor. Este deve poder interromper a leitura e cutucá-la com a unha até que saia ou supor a letra que está ali debaixo e seguir em frente. Como preferir.

Melvin tem profundo respeito pelo que faz, embora nem ele nem o Seu Dentes de Nicotina saibam o porquê deste trabalho existir. Seu Dentes disfarça a ignorância com os tapinhas amistosos nos funcionários-invisíveis e com palavras pretensamente engrandecedoras, como: nós dependemos de você para manter a ordem por aqui, meu jovem. E Melvin cuida para que o seu relógio de parede esteja sempre afinado com Brasília.

para Leonardo Cruz Gonzalez, esta paródia e o meu amor.

9.11.08

receita pra amenizar saudade

Você vai precisar do seu travesseiro e do sol.

Pega o travesseiro, põe ele no sol.

Deixa curtir por meia hora.

Pega de volta, deita na cama, abraça ele.

Pensa em mim.

6.11.08

sem título

não precisa ser sempre publicável, precisa ser só
a vontade de mergulhar quando tiro a roupa em frente à janela,
o ar fresco da noite nos peitos
mas meu pai desaprovaria essa exposição, meu tesão pelos estranhos,
essa repulsa pelo verbo administrar
meu pai procura me ensinar a viver,
mas viver é mesmo aprender a viver
não precisa ser sempre publicável, precisa ser só
o cheiro obsceno de um amor antigo
do que é que sou feita depois de experimentada pela vida?
depois de experimentada, a vida precisa ser publicável?
a dignidade das minhas noites mal dormidas,
a cotação de cada crise,
um gráfico bem elaborado do meu crescimento
precisa ser vida ou só
projeto?
(e uma ansiedade triste)
quando eu nascer vigorosamente noutro dia,
preciso ser pública e publicável?
quanto valho sozinha?
se toda madrugada é um fôlego

2.11.08

tinta fresca

Eu te devoro com os olhos úmidos. Eu tento te amolecer. Mas teu bom olho bóia etílico e embaçado – você nunca mais vai me ver. Eu arrasto os pés por esse espaço teu, eu contamino a tua vida? Eu quero amaldiçoar todos os cantos com a minha melancolia, mas tudo virou para o avesso e os cantos convergem em um só ponto, que eu não vejo – aqui eu não caibo, aqui eu não mereço. Eu sou expulsa pela tua indiferença. Eu levo um pedaço de você, de que nem vai se lembrar. E o dia tem seus direitos.

Esse domingo chove descompassado. Eu não quero voltar para a cidade. A fuligem cobriu minha alma quando pisei descalça o asfalto. Eu quero ir lá fora agora, menina, eu quero a chuva, a lama entre os dedos, a grama macia, eu quero meu corpo mais livre, meu corpo de criança reconciliado com o mar. Eu não te queria quando eu comecei, o que eu quero é terminar contigo. Vamos, vamos lá fora. Eu um dia te convidei para dançar. Mas você é a dona da música. A dona da música de costas para mim. Quando você se virar, será para o lado errado, o lado em que você continua sem (me) enxergar. Eu moro do lado de lá do teu rosto. Eu acho que vou sempre morar.

20h30

- Alô

- Oi, filha!

- Oi, mãe

- Tudo bem?

- Tudo bem e você

- Tudo bem... E essa cabecinha como tá?

- Tá bem, mãe

[a pior parte de não enlouquecer é ter que aguentar sua mãe achando o contrário]

29.10.08

menor

Tristeza se apega na gente, não diz quando não diz por quê. Nem se desconfia tristeza essa coisa que se nos instala no oco da noite, obra de homens cuidadosos de não querer machucar, caminhando no escuro cobertos de estilhaço de vidro. Também quando vai ninguém sabe. Tristeza não despede. Que quando está, está, e a gente pensa que é só amuo e silêncio dedentro, e a gente dá de escutar pessoas todas com um ouvido só - o outro zumbe no não sei onde, perdido em tristeza. E a boca cala ou responde os conformes... ô viver mais repetido - ela queria nem queria dizer... Quandem quando o coração sapateia o peito, ligeiro, miúdo (assustado bichiínho). Tristeza sede sem cura é um bocejo desistido infinitamente, é um vício, o vício. A gente pensa às vezes que é doença e de pronto toma vermífugo. Mas, meu velho, desengane, é tristeza é sim. Ali, embarcada nos olhos, navegando no tempo, vendo tempo passar.

27.10.08

hoje

yuri, eu queria um jeito correto de dizer que te amo. jeito nobre, de transparecer assim que te sei a todo momento e que me assusto tempotodo também. yuri, mas você nem e-mail tem. vou ter que publicar meu amor? e esse conhaque, essa cerveja, essa gente toda será testemunha.

yuri, é que eu te amo mesmo. queria morar em você.

26.10.08

liberta, que será também

e se
morrem?
meus pais
meus pais morrem
qual?
minha mãe
meu deus
e se morre minha mãe?
meu pai
meu pai
e se morrem os dois?
um acidente
um abismo
um em cada mão
e força só para um
quem eu solto?
tenho
tenho que escolher
meu deus

e se não agora
mais tarde
meu pai doente
minha mãe doente
eu de vida feita
morro junto?
e deixo um
velho
e deixo filhos
novos
e já sou forte
forte
é certo
não morro

12.10.08

somato

Última chamada para o embarque. Você vem? Novamente te preparamos um convite feito de eventos do acaso: a moça deixa de corresponder, o trabalho se equilibra monótono, outras obrigações dão trégua, família e amigos distantes, e a terapeuta, meu amigo, desistiu de você faz é tempo.

Mas, tudo bem, você deixou o consultório devendo mais de cem paus e agora essa oportunidade racha outra vez a avenida e te abre uma enorme (enorme!) saída. Tambores!

Opa, opa, não seja tão apressado. Eu sei, a fumaça, o blues, o cheiro de whisky e cocaína, tudo isso te seduz, mas ainda falta vestir a mochila.

Dentro dela acomodamos cuidadosamente todas as suas lembranças dela. Ah vá, não chore. Resgatamos até as que você pensava ter esquecido. Lembra de como ela disse que achava a neve feia? ...Maricas.

No canto direito estão as canções preferidas dela, misturadas às que você tanto ouviu nos últimos tempos e que, portanto, só te lembram ela. No canto esquerdo, veja: os e-mails que vocês trocaram. Decidimos imprimir em tinta colorida para dar um efeito legal quando as lágrimas espalharem.

Temos também algumas de suas últimas pérolas melodramáticas, como "se você vem, então o amor existe" e "como uma prece, seu nome no escuro". Maravilha. Lembra um pouco aquele hit da Madonna, mas tudo bem. Você mesmo que fez? Ao menos balance a cabeça, rapaz.

Bom, neste bolsinho está a carta dela, recibos de restaurantes e bilhetes de cinema e teatro. Ah, você deve estar se perguntando o que são esses dois tubinhos no porta-canetas. São cápsulas. Uma contém a risada dela e a outra, um trechinho de Tu me Acostumbrastes, que ela cantou acompanhada do violão - capturamos para você, garoto! Só dá pra ouvir uma vez, use com sabedoria.

Acredito que agora você está pronto. Não se esqueça: deus é apenas o amigo imaginário dos adultos e a felicidade é uma imposição cruel do capitalismo. Agora, vá, pule, enlouqueça macio.

8.10.08

the sound of words as they tumble

Como uma prece
seu nome no escuro

a torneira goteja nossas promessas
sofregamente - escorrem

o quarto penumbra
minh'alma penumbra
tudo espera ser

a pele macia ressêca
seios murchos amolecidos
desistidos

e um corpo entregue se dobra - vai o tempo
fetal - vai o tempo
nostalgia o que é

atrás do peso da porta
o barulho de chave alguma
ansiedade infantil amorfa

zombeteia o ponteiro mais velho
não voltanão voltanão volta

29.9.08

será

Se você vem, então o amor existe.

Mas, se você some, se você hesita
Ah, mas, se você me evita.
Se conserta o que não somos e nos desconcerta.
E se quando as coisas gritam no teu quarto meu nome,
daqui eu te peço baixinho que não nos desmereça,
tocam as músicas que trocamos,
e você não ouve.
Se nada disso ouve,
nada disso houve.

13.9.08

sopro

Antes de dormir, leio outra vez sobre aquele lance de funcionários do metrô que, de luvas, empurram os passageiros para dentro dos vagões e empurrar não é a palavra, quero algo melhor, que traduza a sensação de esmagamento, o suor de centenas de japoneses em um espaço mínimo, ironicamente feito de lata. Da primeira vez, na verdade, não li, alguém me contou. Uma dessas pessoas que contam várias coisas [e depois roubam nossas mulheres]. Tiram coisas dos bolsos, pequenas e absurdas, aos montes. Fico sempre a me perguntar por onde passam e recolhem tudo isso, que tamanho têm os bolsos - eu, que me distraio tão facilmente de ser o que gostaria de ser e de me abaixar na rua para procurar as coisas rasteiras, as coisas que voam para debaixo das bancas de jornal, como os meus dez reais daquela vez em que me senti patética, protagonista do ótimo conto que eu não sou capaz de escrever, escrever, escrever - deve ser esse o fluxo de pensamento mais forçosamente psicografado desde. Já disse que tenho tido dificuldades, e só o que sai são cartas, bilhetes, dizeres, dizer a alguém qualquer coisa de agora, essa vontade de me corresponder largamente com todas as marianas. Contar a você que esqueci de pensar sobre o papel do Estado. Sim, nós prevíamos tal coisa, mas só ontem fui flagrada e tive que fugir, levantar da mesa e correr disparado pelo saguão do restaurante, derrubando talheres pesados e delicados garçons, porta a fora, pela chuva, eu e o meu medo da farsa descoberta, eu e a vontade de não pertencer ao jogo dos argumentos, ao nojo dos argumentos. Mas, sim, eu os argumentos soldados de minha muralha de verdades putrefatas, que guardam somente joelhos dobrados no chão, a entrega, o alívio da rendição, resguardado por tudo aquilo que agora escorre com a chuva, pela roupa encharcada, pelos cabelos ensopados, pela calçada...

10.8.08

desterro

Lembre-se de nós como a poeira num facho de luz
suspensos e iluminados
a dançar a última valsa
na manhã mais bonita do inverno

Lembre-se de nós resgatados da penumbra
da sombra, da terra
por uma gentileza do sol
e a concessão dos ventos

Lembre-se de nós inertes no tempo
antes de a casa acordar
e alguém se apressar em fechar a janela
para ir a qualquer lugar onde as coisas são necessárias

Lembre-se de nós absolutos inúteis
a celebrar o descuido da noite anterior
quando de uma brecha esquecida
emergimos infinitamente

16.7.08

de volta

Fica um pouco mais, eu te pedia ao pé do ouvido, roçavam o travesseiro as palavras mudas, te pedia da boca para dentro, te pedia. Fica um pouco mais, estiradas no chão daquela sala, o nosso lugar [que agora reformado, lavado de nós, quer saber para quem são os outros centímetros da nova cama]. Fica um pouco mais, e tu logo se convertia em coisa outra, acendia cigarros e serpenteava pela casa – não há muito para onde ir, você sabe, somos só nós e as paredes que erguemos, e o ar aqui dentro se acumula. Ele é tudo o que suspiramos, tudo o que gememos, ele é feito de nós, não há sentido, não há para onde. Eu sei. Mas você bramia porta afora, para tomar fôlego, seduzir um desconhecido, ficar horas naquela ponte, esperando o quê passar? E voltava enfim, usava a própria chave, tomava um banho eterno, eterna a minha espera ao lado da porta. Eu não queria, não queria, mas te perguntava o que havia lá fora, se sol fazia, se descobrira qualquer caco na rua que a gente pudesse trazer para dentro [desconfio que em algum momento tenha passado a esconder cacos nos bolsos].

Você disse que não se esqueceria. Mas a gente se esquece das coisas que diz.

Vai passar o tempo e te encontro outra vez. Falaremos sobre as coisas dos homens e nos cumprimentaremos como galinhas gordas que se bicam nas bochechas e não se alcançam. Quero uma boa desculpa para que me vire as costas e vá embora, para que erga as sacolas, me vire as costas e vá, mas não sem ouvir, ouça pela primeira vez, quando eu te sussurrar, te mostrar no dedo o nó que ancora a imensa promessa de nós duas, te trouxer de volta. Fica um pouco mais.

13.7.08

entrementes

Que já não pertenço aos bandos e ainda não sei ser sozinha.

26.6.08

uns cachos

Que quer comigo esse moço
que assim se achega, sem pressa
e não me estremece o corpo
mas roça e me cava um poço

Que quer trazer esse enrosco
que cresce, desmerece os outros
começa um sem sentido
suspende meus alvoroços

Carece de ser esquecido
cessado antes do sem nome
porque se trespassa a casca
se instala, me cala, me come

5.6.08

só para tirar da frente o último post horrível

o mau humor é a ruminação de um pedaço insosso de realidade.

28.5.08

Pequeno amor febril

É de gemer baixinho o amor miúdo que não me deixa
Quedo-me inútil debaixo a cobertas e lembranças de você - metonímias de minha solidão
Também te recordo aos pedaços, os traços
O conjunto dos olhos bem desenhado
e o canto fino dos lábios, que se alargam, se provocados
As mesmas imagens repetindo-se como grande insônia sonhada
O dia em que se propôs a pensar por longos minutos na cama...
O dia em que...
Sou na saudade calafrios, tristeza contida irremediável
E escrever não consola os que se pensam coitados

14.5.08

tic

O dia tingido de amarelo, voltando luz às cores fortes, à rua, às roupas, à mulher que arrasta seu guarda-chuva pela calçada áspera de vida, os pés firmes na poeira cor do céu cinza desse dia de contrastes, os letreiros, semáforos, faróis dos carros muito vermelhos, muito cor, muito. Meus olhos manchados de todos os tons seguem o guarda-chuva que trepida na brincadeira preguiçosa da moça de laranja que vai para onde. Um homem olha o outro decidido, com o grande nariz, num instante último em que se cruzam, cumprimenta. O outro estaca. Eu estaco. O homem que carrega um embrulho de isopor atrás de mim, quase me suja de molho. Que molho? Mas não se ouve o tic tic do guarda-chuva que se foi à frente, nem soube do nosso quase acidente de pedestres mornos nesse dia inteiro de cores, dia agressivo nublado, com promessa de chuva e sem chuva pra descansar o corpo, exausto do ofício, na certeza de um vaiparar, hora ou outra, parar. E o relógio insiste.

9.5.08

tosse, tosse

- E então, doutor?

- Ergofobia.

- Hum... devo tirar uns meses de licença?

28.4.08

já nas bancas

Como me tornei o estereótipo de mim.

25.3.08

agora

Queria-te o que já foi
Queria-te cumprido
Seria pois bonito
seguir adiante

Trataria de cuidar do sido
costurá-lo
inteiro amor feito
Vesti-lo

Mas o que é que se faz
quando nas mãos tremulam
o que não foi
e foi embora

o que se faz do ido?

1.3.08

ella

Eu a vi revolver areia com os pés
violentar a praia infinita
E rasgar a Augusta
dona de todos os cantos

Cantou idéias sem rimas
a voz doce, mole de cachaça
atrapalhou a desarmonia
dos dias bem comportados

Pregou desordem e
recompôs o real
com a máquina de filmar
- seus dois olhos pintados

Entre um cigarro e outro
questionou meus propósitos
meus vícios, meus ódios
sem dirigir as palavras

E assim, desgovernada,
no acaso do ocaso,
levantou o vestido
furtou-me as horas

Eu achei então que só saberia
viver no escuro, no vão do tempo,
em todos os lugares
que estremecem a cidade

Mas ela dobrou a esquina
tomou carona num ponteiro
que eu já não via passar
por aqui, deixou somente

tudo o que governava lá.

13.2.08

o monstro no ninho.

Quando eu era pequena, gostava de brincar uma brincadeira esquisita. A idéia vinha sempre que estávamos chegando em casa, de carro. Eu imaginava que aquelas pessoas tinham me recolhido na rua, que eu não pertencia a nada daquilo, nem os conhecia. Eu entrava na casa olhando ressabiada para tudo, achando as coisas limpas demais, a casa grande demais, fazendo um esforço imenso para não reconhecer os móveis. Eu tocava tudo com receio e encantamento, e caminhava farejando os cômodos, feito bicho. Eu então encontrava meu quarto, e inventava que tinha sido especialmente decorado para mim, naquela tarde. Que o casal gostaria que os chamasse de pai e de mãe, esses eram seus nomes. E o meu ali dentro seria: filha. Por último eu tomava um banho para me sentir limpa como a casa e me alimentava com muito gosto. Eu sempre me fingia esfomeada.

Hoje, quando volto a essa casa, descubro meus pais ainda brincando.

um trecho de qualquer coisa

Tinha a garganta seca e as pernas doloridas, ainda do tombo no morrinho. Mas não podia parar de correr. Os outros meninos iam à frente e, de olhos fechados, ele aguçava os ouvidos para o desespero dos chinelos batendo. Subiu a ladeira meio sem equilíbrio, vacilou por um momento. Vem, vem, vem! Lá em cima, debruçaram-se lado a lado na mureta da ponte. Um trem encardido passava correndo e sumia por debaixo dos pés deles todos. Olha ele ali! Ao lado das paralelas de ferro, sacos plásticos, desses de lixo, cobriam alguma coisa que havia molhado a areia dum jeito esquisito.

Ficou assim, olhando, olhando. E sentiu um calafriozinho sem explicação bem na hora em que o último vagão desapareceu e levou com ele o punhado de vento que arrancou os sacos pretos do chão. Aterrissaram do outro lado da linha, mas ninguém reparou. Os seis pares de olhos estavam estatelados no corpo que o vento revelara. Ficaram calados por alguns minutos e ele nem queria mais olhar, mas era impossível. Estava lá: imóvel, coberto de sangue, e tinha as pernas numa posição que nem ele, que se divertia com a cara de susto da mãe quando lançava os calcanhares para trás do pescoço, poderia repetir. Caco forçou um vômito barulhento que foi cair lá embaixo. Os meninos acharam graça.

Os dois mais velhos, o Júlio e o Caco, falavam em descer e ver se os olhos estavam abertos, enquanto os outros se apoiavam na mureta para cuspir e mostrar a façanha ao precursor da brincadeira. Ele não. Continuava hipnotizado pela cena. Era a coisa mais horrível que já tinha visto, mais do que a pombinha que o cachorro estraçalhou. Passou a mãozinha devagar por toda a mureta – tinha os nós dos dedos esfolados e cheios de areia – e achou que de olhos fechados poderia sentir o homem ainda ali, preparando-se para pular. Mas só o que veio foi o safanão do menino novo, primo do Jorge, que riu dele e o apressou para descer de volta a ladeira.

Ele não queria ver os olhos. Não queria ver se o cérebro escorria pra fora que nem no filme do cinema do postinho. Por isso ficou ali brincando, do outro lado da linha do trem. Mexeu nos parafusos enormes, catou pedrinhas. Até que os meninos se cansaram da brincadeira de empurrar uns aos outros para cada vez mais perto do morto e depois voltar correndo, e resolveram ir embora.

Chegou em casa já de noitinha. Pôs água pro vira-lata e recolheu a mangueira da grama. Pisou em casa com os pés sujos de areia, os chinelos nas mãos. A mãe não estava. Talvez na área. Mãe? Não, não estava. Colocou os chinelos sobre o tanque e voltou à cozinha. Pegou pão, manteiga e leite. Em seguida, prato, faca e o chocolate em pó. Montou o lanche. A mãe o chamava de ratinho, por causa desse jeito de comer as coisas segurando firme com as duas mãos e arrancando naquinhos com mordidas ligeiras.

[...]

29.1.08

.

às vezes eu choro, eu nem sei por que eu choro. é preciso tanto esforço pra achar sentido. tudo quase não tem, e às vezes eu quero desistir. mas é inútil querer também, você entende? eu fico aqui sozinha querendo estar em tantos lugares, em tantos tempos onde não haja tempo. eu quero saber pra onde vai tudo isso, isso que é nada também e que eu não sei dar ordem, eu não sei dar ordem. faz tão pouco sentido. parece que tudo caminha pra um limite, onde tudo deverá implodir, admitir assim a sua falta de razão. finalmente, admitir. e então a gente pode descansar, sem mais fingir nada. mas por enquanto eu choro e continuo aqui sozinha querendo que isso fosse uma carta, mas eu também não teria pra quem enviar, você entende?

28.1.08

Meu pai sou eu - por José Antonio Gonçalves

Quando meu pai morreu
evitei aceitar sua luz extinta
deitei o peso de minha mão em sua testa,
traduzindo mais do que o medo de estar só,
fixei meus olhos em suas mãos com tinta,
e cobri a minha própria fronte com a morte.

Quando meu pai morreu
lembrei da sina do alto do pinheiro,
do vaticínio do fundo do poço,
da saga para manter a chama acesa,
da lida para levar o lume da casa
e da reza surda em mim com sua ausência.

Quando meu pai morreu
passei a ser só eu e as coisas que me dissera,
de como sentiria sua falta,
da razão de suas ordens avessas,
da parte sincera em mim
que só existia na sua presença.

Quando meu pai morreu
percebi que suas mãos não levariam minhas mãos,
os nós dos seus dedos não desatariam meus medos,
seus olhos fechados não revelariam meus sonhos.

Quando meu pai morreu
entendi o que um pai sente quando perde um filho,
como alguém na escuridão e uma escada sem corrimão,
uma luz que se apaga no ermo da estrada,
no momento em que os pés devem sentir o chão.

Quando meu pai morreu
carreguei com a força de um filho seu corpo,
em cada passo senti a dor de sua luta,
empurrei à terra o que sobrou de mim mesmo,
enterrei o que não pude ser para ele
e repassei nossa disputa a Deus.

18.1.08

Isso em mim que não me pertence

um dia me come
um dia me vence

13.1.08

planctons

É madrugada sem horas nem cor. Ela me fita através do escuro. Temos a mesma altura, ajoelhadas. Nossas saias – embebidas em mar e sal e areia – encostam as barras conforme as soerguemos até à beira d’água. Carregamos cada uma, nessa barriga de tecido que se forma, pelo menos uma dezena de pequenos serezinhos brilhantes, que deslizam de um lado para o outro. É como se os embalássemos. Rimos, e levantando a cabeça: nos sorrimos.

Não enxergo seus olhos, mas a boca se revela clara, e eu a sinto salgada. Quando vem uma onda, nos levantamos de súbito sincronizadas, e os corpos se encostam encharcados até os seios. Os abraços são todas as palavras não ditas. Celebramos.

A menina termina meu ano com promessas, com amor verdadeiro. Ela o cose delicada, sem me perguntar quantos meses durou e o quanto custou arrastá-lo até ali. A menina não entende de pesos ou medidas. Mora no mar. Chegou quando a maré baixou, caminhando por aquela passarela enluarada que atravessa o mar inteiro quando a noite vem. Trouxe apenas os cabelos dourados, de cachos desfeitos, escorridos pelas costas – suas pontas lambem a superfície da água e minhas mãos machucadas.

Ela me cura. Me envolve no seu leito de maresia e traz de volta a paz. De todo o antes, não há mais nada. E eu já posso pisar a terra.

8.1.08

do infinitivo amar.

Eu amo
Tu não

7.1.08

74




Eu penso na casa. Penso em vocês.

Arde, arde o peito preso. O ar preso arde. E não há um corpo quando é assim. Não lembro braços colados ao tronco, estúpidos imóveis. Não sei das pernas trançadas nesse chão. O corpo no chão, não sinto. Há somente o peito, um centro de dor. E tudo se concentra. E tudo desconcerta. Fundo. Eu penso em vocês.

Vem vontade de cheiro de mato e me esforço pra lembrar por quê. É a vó, que caminha pelo sítio segurando dentro da sua, a minha mão pequena. Diz pra eu sentir os eucaliptos – aos montes atrás da casa grande. Acompanho-a penosamente, tentando me invadir do cheiro fresco e de um ar que nunca vem.

E é esse tempo seco. Esse chão imundo. O quarto quente e todo o ar que não há. Preciso voltar, mas ainda consciente – penso em vocês. Calma, acalma.

Acalma, filha. É meu pai que fecha os olhos a pedir. Cola o peito contra minhas costas fracas e pede que eu respire junto. Acompanha... Enche os pulmões e os meus, doentes, tentam-tentam. Somos silêncio. Tanto.

Mas de nada adianta o ar que entra. E não sai. O ar apodrece dentro do peito duro, não sai. Eu sopro fu-undo, doído.

Minha mãe aguarda compreensiva à porta da casa grande. Quando volto, senta-me na cadeira e acalma. A mãe é feita de calma fingida e de um amor em tapas ocos pelas costas. Mãe, eu só queria que fosse para sempre. Cobre minha cabeça com a toalha branca-branca e fico eu e o vapor da bacia. A respiração forte, a paz da bacia. Vai sumindo o gatinho de dentro. Ouço a mãe miar: melhor, princesa?

Eu penso na casa, no ar fresco da sala. No cheiro limpo. Na música toda. Eu quis voltar. Quando não quis mais nada, eu quis voltar. E agora esse chão contra o rosto, esses olhos aflitos e o ar que não chega.

O peito inflamado. As costas cansadas. A morte nascente. E eu penso em vocês.