14.12.07

o meu samba está de luto

Ele me olha de soslaio. André é tímido como as crianças solitárias. Planta os pezinhos no canto do quarto e se apruma para me observar de cima de seu um metro de altura. Eu me finjo distraída com a roupa de cama, mas ele sabe o que quer, não vai sair dali até. Há três semanas não lhe dou colo, não faço festinha em seus cabelos lisos. Há três semanas não canto a música da casa ou sequer quiuso uma balada pra ele dormir. André está cheio de saudades - e o pequeno ainda nem sabe que assim se chamam as coceguinhas que nascem na ponta do nariz. Sente falta de uma mãe, mas eu não posso ser nada para ele agora. O menino faz graça, se balança feito um pêndulo, segurando as mãozinhas atrás das costas. Ajeito o travesseiro. Ouviu?

- Eu não posso ser nada pra você agora. Arraste esses olhinhos pra lá, meu amor, André, violãozinho. Eu não sei te fazer carinho quando estou assim tão triste.

7.12.07

pescaria

... a água da torneira esquentou rápido - peguei trauma de bidê porque o lá de casa era desregulado, eu sempre levava um banho, talvez fosse porque eu tentava abri-lo estando de pé, por que eu fazia isso? - acho que era 'uma babá quase perfeita', alguma coisa assim, ela estendia o lençol perfeito na cama, só sacudindo e deixando cair - parece um pesadelo essa saudade - esqueci meu guarda-chuva no carro do cara - faz silêncio aqui, estou perdendo meus amigos - chove ainda - medo de ir ficando sozinha, como que sendo expelida do que já fui, quando éramos todos - o sorriso dela, o sorriso - em 1996, meu irmão tinha seis anos - aquaplanagem é uma palavra tão bonita - acho que música instrumental não me absorve, sou mais eu que absorvo ela, talvez - os exercícios do cursinho, pra descobrir os ângulos dos triângulos - acabou de passar o último túnel - ando dando pouca atenção a minha mãe - poxa, eu estou bem, estou muito bem - há algo errado com o pH da minha língua - maresia - se fosse em um acidente de carro - fome - se fosse no mar - a vez que gastei um filme de 36 com fotos das bonecas no quintal - cheiro de casa ...

4.12.07

plagas sem ti

A porta do elevador se fechou, a minha continuou aberta. Apoiei-me de leve sobre a maçaneta e encostei o rosto na superfície fria da porta, numa cena tragicômica, esperando que o elevador voltasse, que o silêncio acabasse com ela chegando outra vez. A luz do hall se apagou e resolvi que era esse o aviso para que voltasse pra dentro. Pensei nela enquanto esquentava a sopa e trocava o pijama e depois disso também. Achei o apartamento um pouco vazio demais, um pouco vazio de mim - porque ela é mulher de preencher espaços e permanecer, mesmo quando acreditamos ter ido embora.

Sabia que a sopa estaria sem sal, mas resolvi tomá-la desse jeito. É que em noites assim eu tenho meu próprio gosto, e aprendi, talvez com ela, a respeitar o que vem de dentro. Senti as pernas doloridas e estranhei - não estranhei - ter reparado só agora. Havia passado a tarde caminhando sob a chuva e sob o sol e sob a chuva e sob o sol. Não caberia dizer a ela, mas passei o dia tentando caminhar até a noite, quando nos encontraríamos. E agora a madrugada invadia e a sensação era de mais um encontro molhado de lágrimas e qualquer coisa como culpa, que também não é culpa, era mais um: sinto muito por tudo não ficar bem sempre e para sempre.

Me enche de medo pensar que o apartamento pode ficar manchado de tristeza para nós. Porque as lágrimas caem quase todas no meu edredon verde-limão e por mais que ela goste dele, ninguém dorme bem em coisa molhada.

Será que volta? Será que vai lembrar que depois que choramos, acabamos sempre sor-rindo e que, no fim [ou no meio], somos sempre esse emaranhado bonito de felicidade e dor?

Vou esperar acordada por uma hora, talvez duas, talvez volte. Se não voltar, ligo pra ela cedinho e conto como a noite foi triste, dum jeito que não aflija nem pese, mas que seja eu: Meninha, sabe que tinha um ossinho fino de frango na minha sopa e eu quase morri mas não?!

2.12.07

ausente

No outro dia passei pela loja de velharias e parei pra olhar com mais cuidado aquela bicicletinha de arame que você me apontou várias vezes, até que virasse uma mania engraçada-chata. Sabe, eu já não tenho vontade de te dar presente algum, mas, às vezes, em uma só semana, me vem uma lista enorme de agrados que deixei de te fazer. Por displicência mesmo. Porque vivo naquele outro planeta que você inventou pra mim - e vejá só como as coisas são, eu já nem me lembro o nome engraçado que você botou nele.

É como uma pilha imensa e desequilibrada de mágoas, que foi se fazendo por dentro até chegar-me à boca e dar esse gosto de tristeza, de um lamento tão grande... que se recusa a ser vomitado. Perdi a conta do quanto nos agredimos até que virássemos esses retalhos de carne viva, e eu queria tanto saber juntar tudo e remendar e cuidar para que fôssemos outra vez. Só o fundo de mim sabe o quão inútil é essa ansiedade...

Agora nos encontramos e eu não tenho mais vontade de te encostar. Não quero que me encoste também. Meu corpo são cinzas, o que restou são cinzas. Eu me sinto arrastando um peso morto, tão cansado de carregar na boca o veneno da tua saliva, que me condenou os dias, desde aquele em que respondeu ao meu amor com um punhado de compreensão e carinho. [aquele dia em que pedi calma - à tua língua, ao meu coração]

Tem até pedais. Eles giram fazendo um barulhinho circular estridente. O dono da loja ficou satisfeito com minha escolha. Ele me lembra um pouco o teu avô Inácio. Coloquei a bicicletinha na estante do quarto, e de vez em quando acordo e acendo a luz pra olhar pra ela. Ali, num embrulho transparente, com fita azul e um cartão, que eu também nunca vou te entregar.