26.11.07

O Ginógrafo

Ao pé de mim, lia o sábado em manchetes, fazendo caretas. Não notou que eu havia mudado os sofás de lugar outra vez. Depois ainda arrisquei: ficou melhor assim, não? Não, não deu atenção, tinha um grande livro lhe tampando o rosto. Achei que estava lendo cada vez mais. Crescia com isso o silêncio, e foi só no silêncio que pude perceber essas coisas. Andávamos em frangalhos de tanto ter discutido sobre o emprego dela, o meu desemprego, a mudança, sua mãe, meu irmão, nosso filho, o dinheiro, e a cidade insuportável a nos assistir. Porque não adiantou mudar. Eu disse que não adiantaria e eu teria lhe repetido isso mais uma vez no dia em que o menino ficou doente, não estivesse tão ocupada lendo as bulas dos remédios. É a poluição. E a neurose ensinada já na escolinha. Há algo de muito errado em tudo isso, está me escutando? Por um tempo fingiu escutar. Ao menos respondia. Às vezes aos berros. Depois, calou-se, meteu o dedo indicador na bochecha, apoiou no polegar o queixo fino e assim acompanhou tudo o que as revistas anunciavam sobre o mundo dia após dia. Era sempre desse jeito que se sentia à vontade para correr os olhos pelas palavras. Quando passei a reparar a fundo, descobri que seus olhos faziam o movimento de uma máquina de escrever manipulada por uma boa datilógrafa. Devia ler na velocidade dos pensamentos... e como pensava, e como raciocinava de modo alucinante quando costumava me cuspir um vasto vocabulário por entre os dentes! Agora pensando, fazia tempo que não via seus dentes. É bonita sorrindo, mas assim, séria, também, principalmente quando está vestida para apresentar o jornal. Não é de todo ruim esse trabalho, findascontas. Gosto de vê-la disposta pela manhã, pintando, meticulosa, o rosto de mulher bem feita. Talvez eu devesse voltar os sofás como estavam. Talvez devesse jogá-los dez andares abaixo pra ver se ela larga os papéis e grita como na cama. Caramba, quanto tempo faz? Eu devia me escrever um romance pelo corpo nu pra obrigar a curiosa a me descobrir outra vez. Acho que se chama saudade.

- Ana...

- .

- ...já percebeu que tu sempre faz um L com a mão esquerda e apóia o rosto, quando está lendo alguma coisa?

- [sorriso] Eu faço?!

25.11.07

domingo

Eu já bebia cerveja quando mamãe começou a me ensinar a cozinhar. Ficava sentada à mesa, um pouco mais entretida com minha tulipa dourada do que com suas instruções Aí você pergunta que peixe tá bom pra fazer moqueca. Peixeiro não costuma mentir - dizia de costas para mim, deslizando entre a pia e o fogão.

Se fosse antes, não demoraria até que eu fugisse da cozinha pra convidar Bié pra brincar de lego no quarto. Nas brincadeiras ninguém quase nunca cozinhava. Embora sempre houvesse cozinha, e armário embutido, pra economizar peças de construção.

Mas eu escutava interessada, quase sem pensar no que Bié estaria fazendo de-legal. Vem aqui ver. Eu ia. É só montar. Primeiro a cebola, que faz bastante água. E eu olhava maravilhada a cebola fazer água. Depois tomate, uma camada. Depois pimentão. Verde não, né, mãe? É, verde faz mal, pelo menos pra mim e pro seu pai. Pra mim também, mãe, faz mal. Depois salsa, cebolinha e coentro - e eu sorria para os dedos delicados de minha mãe, vendo um pouco de tudo aquilo salpicar sua pele, a pensar na minha pele, tão exatamente suja algum dia. Quando aprendesse a dançar entre a cerveja, o fogão e um cigarrinho, leve. Quando no supermercado soubesse roubar um punhado de coentro misturado ao ramo da salsinha. Porque nada se deve roubar nessa vida, filha, a não ser coentro.