12.11.10

reconquistaria

já estive aqui antes
reconheço o farfalhar
debaixo de cada passo
e mesmo míope entendo
ser este o alvo de madeira bruta
que naquela noite acertei.
do clima frio me recordo
mas que sapatos usava?
a altura, o solado, a amarrração
combinados a que calças
com que botão, cinto
a camisa por dentro ou fora
gola, bolsos, um casaco ou não
porque vai do peso de tudo isso
vai da mobilidade que dei aos braços
se estavam rijos ou arqueados
vai da posição.
e se a terra úmida for a mesma
nenhuma certeza sobre
o arco que tenho às mãos
especialmente a tensão da corda
aqui nova, lá rota?
este recurvo e aquele quiçá composto
erguendo uma flecha única, outra,
a que distância em que altura?
um tiro apenas
e vento forte, disse a previsão

16.6.10

cama, mesa

tempo faltou
pra te tatear
encontrar a ponta
dos nós dos
dedos
(enquanto os tinha nas mãos)
dedilhar
tuas camas de gato
as molas castanhas
o cheiro de sono
mal sabia que
era caso urgente:
questão de fome &
sobrevivência
questão
de febre & loucura
eu, que aprendi a tomar
no dedo a gota
de azeite
provar o pão
seco na língua,
não percebi
pouco a pouco
sobre as mesas
as cadeiras
se viravam

27.5.10

todas as manhãs
teus olhos mergulhados
em maravilhosos não sei ondes
eu aguardo a tua volta
a pergunta em voz macia
eu pacientemente espero
que você me ame
também hoje

(em algum lugar em 2009, para Lívia Thimotheo)

12.4.10

poema-diálogo nº1 ou de fazer mar

a cada dia

                          após tantos dias

mais próxima à porta

                          passos na madrugada

concluí naturalmente

                          dissimulo à tua vista

que o piso se inclinava

                          tangencio arestas postas

nem uma lágrima

                          seca partida

até ouvir as chaves

                          mulher de mim

casa de sal

                          e aqui fora chove

1.2.10

quando

Quando chove, o fim da tarde e o início da manhã ficam muito parecidos. Se o ônibus deslizasse agora na pista e batesse de lado contra os carros que vêm de lá, se eu fosse lançada para fora e rolasse pela lama do acostamento, e acordasse um pouco decepcionada e tonta, pensaria: que horas serão? A moça ao lado olha o relógio. Pode ser que eu tenha dito a última frase em voz alta ou pode ser que ela faça isso todo dia o dia todo, como um ato-reflexo, um cauto-reflexo, e então foi só uma coincidência, como quando olhamos o relógio e ele marca 13:13 ou 17:17 (por via das dúvidas, minha avó sempre faz um pedido), mas nesse caso também se trata de olhar o relógio, o que torna a comparação péssima, péssima. Lá está um posto policial com cinco estátuas. Policiais não são homens, são policiais. Isso é mau. Esperamos qualquer comportamento das autoridades, nada surpreenderia; essa deve ser a pior forma de submissão que existe. Esperar. Prefiro os circulares a esses ônibus de linha. Porque aqui não há mistério, não há a dúvida ansiosa: será que é hoje que não vou descer daqui, que vou continuar girando pela cidade até o fim do dia, quando já tiverem me esquecido, quando já tiverem constatado 'está louca, girando pela cidade', quando dividir com o cobrador este terrível segredo de que os outros passageiros em seu vaivém não fazem ideia? Não. Aqui estou indo de um ponto a outro. Na rodoviária, me chutam. Me acordam e chutam. Daquela vez fui parar em uma praça ensolarada na rodoviária errada, para lá do centro. Sentei em um banco de pedra, com os olhos limpos de choro e sono, e pensei que as sacolas e os velhos e o barulho da rua me devolviam as possibilidades do dia (foi como se o tempo se fundisse ao espaço para deixar no meu ponto de partida as angústias da memória). Eram sete e meia da manhã, sem dúvida alguma.