7.10.09

carta covarde

A verdade é que estou te esquecendo. Como se esquece de comprar detergente. As lembranças são indomáveis, comportam-se dentro da mente como poeira nos fachos de luz. Lembro da disposição das pintas principais do seu rosto. Da textura daquela camiseta vagabunda do Pixies. Da sua voz quando gargalha. Não me lembro como é te beijar, o que eu sentia quando te deixava dormindo em minha cama e ia trabalhar. São coisas que decantaram, desceram à garganta, me engasgaram antes de ser digeridas. Difícil precisar o quanto ainda resta para digerir, se tudo vai passar. Eu não devia te contar isso, mas às vezes te culpo: quando eu tiver de renunciar finalmente a você, terá sido por uma escolha inicial sua. Me pergunto se você realmente compreende essa balança. Me pergunto se era meu papel ter dito alguma coisa. Em outros tempos eu escreveria um texto subjetivo e insinuador sobre tudo isso. Mas agora o amor me parece essa questão racional, e falo em papéis e culpas e balanças. Não gosto dos nossos jogos de expectativas. Temos brincado sobre o fino arame da comunicação à distância, fazendo vista grossa às farpas. Eu pensei que seu mundo aí estivesse tão pequeno quanto o meu – no outro dia tive de ouvir uma incrível história basicamente sobre alguém ter dado uma volta na quadra e encontrado uma vaga. Mas você me diz que está feliz. E o que você não sabe é que quando isso se confirma, ao menos de um dos lados, o mundo se desinteressa de nós. Nada conspira. E o tempo vaza a conta-gotas pela torneira da cozinha, sobre a louça que se empilhou enquanto eu me esquecia.


La carta cobarde

La verdad es que te estoy olvidando, como olvidamos comprar detergente. Los recuerdos son indomables, se portan como el polvo en las grietas de luz. Me acuerdo de la disposición de los principales lunares de tu rostro. De la textura de aquella remera berreta de Pixies. De como cambia tu voz cuando te reís. No me acuerdo como es besarte, lo que sentía cuando te dejaba durmiendo en mi cama e iba a trabajar. Son cosas que se decantaron, bajaron a la garganta (me atraganté antes de digerirlas). Difícil mensurar cuánto todavía resta para digerir, o si todo va a pasar. Yo no debería contarte eso, pero a veces te culpo: cuando tenga que renunciar finalmente a ti, habrá sido por una elección inicial tuya. Me pregunto si comprendés esa balanza. Me pregunto si era mi papel haberte dicho algo. En otros tiempos, yo escribiría algún texto subjetivo e insinuador sobre todo eso. Pero ahora el amor me parece esa cuestión racional, y hablo sobre papeles y culpas y balanzas. A mí no me gustan nuestros juegos de expectativas. Hemos jugado sobre el delgado alambre de la comunicación a la distancia, pasando por alto sus espinos. Yo pensé que tu mundo allí estuviera tan pequeño como el mío – el otro día fue obligada a oír una increíble historia básicamente sobre alguien que conducía alrededor de una manzana y encontró un sitio donde estacionar. Pero me decís que estás contenta. Y lo que no sabés es que cuando eso se confirma, al menos para una de las partes, el mundo se desinteresa de nosotras. Nada conspira. Y el tiempo vacía a cuentagotas en la pileta de la cocina, sobre los platos que se amontonaron mientras yo me olvidaba.

3 comentários:

SahKelly disse...

Parabéns, belo texto. Daqueles que dá mesmo vontade de enviar...
Abs.

Julia Sabugosa disse...

Lindo texto! Dói, mas lindo!

Paula disse...

Gostei muito!
Mesmo.
Parabens (sem acento, mas com um aperto no coracao. ai)