29.4.14

Meli


É claro que eu gostava de te ver chegar
com uma blusa de alças frouxas, uns tamancos inverossímeis
e as mãos cheias de calos, desatando o seu dia no estúdio
a gravação do disco com o seu namorado sempre tão exigente
que te faz se sentir um lixo ali sentada na bateria

ato seguido se punha a me mostrar músicas próprias
e a sonhar sobre outra banda, em que você poderia cantar
eu ia abrindo um sorriso que era também uma espera
aos poucos seu ritmo diminuía e ainda de pé
eu te beijava a boca, aquela boca mole se ajustando ao silêncio

não sei como a gente ia parar na cama e transava quatro ou cinco vezes
você terminava com as bochechas rosadas, e ria
esperando que eu soprasse sua nuca e a linha que vai do seio ao clitóris
voltava a falar de como ele recrimina o seu tesão e que um dia ainda vai se separar
e eu te escutava desgostosa, impotente, buscando com meu corpo a parede fria
(não desejava que você largasse ele por mim, só desejava que você largasse ele)

eu gostava das caminhadas por San Telmo, bairro que você mal conhecia
e se deslumbrava, como um turista em sua própria casa,
da sua falta de fome que de uma hora a outra se transformava em muita fome,
como se estar viva fosse uma novidade sempre
eu comprava umas cervejas na volta, só pra te ouvir cantar

mas houve aquele domingo em que você quis ir embora cedo e eu soube
lembro que caminhar até o elevador me custou cada movimento
abrir o trinco, penetrar o corredor quente e escuro, apertar o botão
nesse último gesto meu corpo inteiro se deteve num arrepio –
espero que você entenda por que deixei de atender suas ligações

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