8.3.09

mofina

Quem só a conheceu menina, chapinhando os pés sujos nas poças do bairro, não veria encaixe na figura esguia que agora carrega um bebê a tiracolo, espalhando pelos cômodos o choro bezerrento do filho malquisto. É suja a casa e escura. É feio o bebê, machucado pelo descuido e pelas bofetadas que leva quando ela já cansou de ignorá-lo. Ela o ama como sua vida. Ela o odeia como sua vida. Seus cabelos desgrenhados caem sobre o rosto enquanto ela aguarda impaciente as notícias da cidade, que a mãe vai trazer com o leite.

Próximo ao centro há uma igreja ladeada por ruelas de paralelepípedos. Sempre que um carro passa por ali, é possível sentir a presença de Deus dentro da igreja, e as senhorinhas rezam com mais fervor. Marília está sentada no último banco. A sacola com o leite e os absorventes atrapalha quem entra pelo corredor. Seu pensamento é como o ar desses dias de mormaço. No rosto a mesma expressão morta dos santinhos no altar.

O bebê caiu da poltrona e a menina grita descontroladamente. A rua é toda especulações e fofocas peçonhentas. O bebê está sangrando. A menina está sangrando por entre as coxas. A mãe entra pela porta e todos os dias parecem iguais.

A essa hora a praça está cheia. Já não se chama footing, mas eles sabem que pouco mudou - uma vez que se começa a girar é só deixar a inércia fazer o resto. Cinco velhas gordas conversam. Seus vestidos baratos escondem boa parte do suor. O filho do prefeito passa ao lado empinando a bundinha e as velhas têm assunto para mais uma hora.

Quando era mais nova, sempre que estava excitada, saía para dar uma volta de bicicleta perto da igreja. A janela dos fundos da casa é a única que permanece aberta durante o dia. Ela está sentada com um dedão enfiado no trilho de alumínio e se toca distraidamente. Faz dois anos que não passeia pelas redondezas. Só sai quando o primo a busca de carro para ir à cidade vizinha. O primo não precisa vir mais, está comendo a amiguinha da irmã.

Um casal trepa caladinho no gazebo. De todas as portas abertas das casas sai a luz azul da televisão. É quase bonito para quem passa. Quase.

Marília banha a criança e pensa nos irmãos. A família achava que quem os mantinha unidos era a mãe, mas quando numa madrugada o pai sofreu um ataque cardíaco em frente a um puteiro e morreu, tudo se desgovernou. Nos anos seguintes o dinheiro foi desaparecendo até que não restasse um único telefonema. Marília pensa em ir embora e levar o bebê. Talvez se o tivesse feito, ele chegaria aos três anos de idade e ela não morreria tão desgostosa. Mas talvez não.

4 comentários:

Anônimo disse...

você espia por tantas janelas...

Anônimo disse...

Ai, esse bicho.

Anônimo disse...

Ai, esse bicho.

Marcos Cruz disse...

Descrição de Paisagem... numero ...